TRINCA: NEIL GAIMAN



Neil Gaiman é um autor britânico que possui uma extensa e marcante carreira nos quadrinhos pelo ritmo cadenciado que ele emprega em uma mídia acostumada com ação desenfreada. Além disso Gaiman costuma, tanto em seus livros quantos HQs, reinterpretar figuras mitológicas e de aspectos culturais em geral, mesclando-os dentro do contexto do enredo. A sua principal obra é "Sandman", quando elevou o patamar dos quadrinhos a um nível contemplativo e quase lisérgico. Dentre o seu trabalho também constam os livros "Deuses Americanos" e "Coraline", além dos quadrinhos "Eternos", "Marvel 1602", "Livros da Magia", roteirização de "Miracleman" e criação da personagem Angela. Abaixo você pode conferir um top 3 de obras de Gaiman.

O OCEANO NO FIM DO CAMINHO

O único item da lista que não é uma HQ conta com um Neil Gaiman inspirado no que tange a uma narrativa fantasiosa e com interpretações ambíguas. O livro aborda o retorno do personagem central a sua cidade de origem por conta do funeral de um parente. Esta premissa no entanto serve apenas como gancho para o desenrolar da história. Digo, do flashback.

Toda a narrativa revela o passado do protagonista, fazendo-o se lembrar de acontecimentos que ocorreram na sua infância. E principalmente de sua amiga na época, Lettie Hempstock, que o convencera que o seu lago preferido era na verdade um oceano. Os eventos que permeiam o enredo revelam um contexto de dura realidade aliado a um caráter fantasioso. Durante a leitura é inevitável questionar se a história é verdadeira ou se era tudo imaginação do garoto - através de uma forma de escapismo da realidade.

O livro aborda questões sobre lidar com a dor da perda e superar traumas, tudo dentro de uma fábula de suspense misturada com elementos sombrios. E a memória reprimida do protagonista reforça a dúvida: tudo o que aconteceu foi sua imaginação ou apenas o esquecimento natural proporcionado pela vida adulta? Cabe dizer que tal questionamento ocorre apenas para o leitor, uma vez que o protagonista considera todas as suas lembranças reais.

Gaiman consegue criar uma narrativa delicada e comovente ao mesmo tempo que insere uma mitologia intrigante. Para os leitores de "Sandman" já é notório o costume do autor de fazer reinterpretações de algumas culturas. Neste caso não é diferente e ele realiza um hibridismo entre as Moiras das mitologia grega e a Deusa Tríplice (Jovem, Mãe e Anciã) da cultura pagã - com a segunda se sobrepondo principalmente pelo estabelecimento de uma relação com a lua.





BATMAN: O QUE ACONTECEU AO CAVALEIRO DAS TREVAS?




A história busca encerrar o ciclo do Batman e ao mesmo tempo reinicia o processo. Não é um reboot, mas sim uma reencarnação cíclica conceitual - algo que soa quase como uma metalinguagem quando se fala de quadrinhos. São diversos os artifícios utilizados para mostrar ao leitor que o Batman está morto e tal pretexto permite a realização de diversas homenagens à iconografia do morcego.

Dentre as principais referências é possível perceber as pinceladas à Batman: Ano Um, Cavaleiro das Trevas, A Queda do Morcego, Filho do Demônio e uma homenagem em geral à Era de Prata do personagem. E o tributo permeia toda a HQ através do traço de Andy Kubert que emula diversas interpretações do Coringa, indo desde o desenho original de Jerry Robinson até a versão da série animada de Bruce Timm e o estilo criado por Brian Bolland na "Piada Mortal".




Durante o funeral é interessante notar que cada personagem presente conta uma história diferente sobre a morte do Batman, indicando o grande número de modos que ele poderia ter morrido durante o seu combate contra o crime e por quantas vezes ele escapou da morte. Dentre as versões criadas por Gaiman, no entanto, a mais interessante (ou perturbadora) se encontra na recitada por Alfred. No pequeno conto o mordomo confessa que toda a galeria de vilões do Batman era composta por atores contratados para darem algum sentido à incessante vigilância de Bruce por justiça. E o Coringa, grande nêmesis do Batman, seria o próprio Alfred visando dar um sentido para a vida do seu patrão.








MORTE: EDIÇÃO DEFINITIVA



Ao fugir do senso comum Neil Gaiman cria uma personificação da Morte totalmente distinta do imaginário coletivo. A dualidade encanta, trazendo dúvidas: como pode ser tão pálida e charmosa ao mesmo tempo? Ser gótica e alegre? Representar a morte mas adorar a vida?


A personagem criada por Neil Gaiman para ser coadjuvante na série "Sandman" foi tão impactante que ganhou vida própria (trocadilho involuntário), o que no mundo dos quadrinhos significa spin off. Em "Sandman" ela é apresentada como irmã mais velha de Morpheus e e integrante dos Perpétuos, seres que existem desde antes da criação do próprio universo. As histórias envolvendo a Morte, no entanto, não apresentam roteiros megalomaníacos e quanticamente complexos, mas pelo contrário: tratam justamente da simplicidade, beleza e das possibilidades que a  vida proporciona. Pode-se dizer neste caso que a Morte é de humanas alto astral.

A edição definitiva conta com todas as participações da personagem na série "Sandman" e suas atividades de caráter solo, incluindo duas minisséries. Inclusive uma destas, chamada "O Alto Preço da Vida", inclui talvez um dos conceitos e diálogos mais lindos, sensíveis e tocantes das histórias em quadrinhos. Na história a Morte se personifica como criatura mortal por um dia para entender/lembrar o significado da vida. É curioso como Gaiman usa a perspectiva da Morte, a criatura responsável por ceifar a existência, justamente para mostrar a dádiva de viver.



E para finalizar a postagem uma música da esposa de Neil Gaiman, a talentosa cantora Amanda Palmer. Melhor casal.